Friday, December 16, 2005

A cegueira na arte ( Primeira postagem)

Estou escrevendo para expressar a opinião que tenho a respeito da arte atual, conceitual; não acredito no que vejo sendo uma arte expressiva, vinda de artistas autênticos, mas sim um sistema que elege quem é conveniente para a corte.
A arte sendo um patrimônio da humanidade deveria ser democrática, e não centralizada somente em uma denominação que se intitula "arte contemporânea", que detém o poder. Quem não se insere na linha deixada por Duchamp, não se enquadra, portanto fica de fora de qualquer aparelho cultural se tornando  um artista marginal.
A vanguarda no milênio passado contestou o sistema, e desde então o modelo segue o mesmo "o novo ficou velho", agora com embasamento em grandes nomes intelectuais irei manifestar contra aquilo que acho que está ultrapassado e necessita renovar-se.
Abaixo um texto do grande poeta, escritor, ensaísta e cronista que tem essa mesma linha de raciocínio:

Afonso Romano de Santa'Anna
A CEGUEIRA E O SABER
 
A conhecida lenda de Hans Christian Andersen "A nova roupa do imperador" é uma variante do tópico que estamos estudando. Aqui não se trata da cegueira biológica, senão da incapacidade de ver e do medo de enfrentar o real. O conto de quatro páginas e meia tem tal força simbólica que incorporou-se ao inconsciente coletivo da modernidade. Por isto, essa história é dada como pertencente a vários folclores, como o português, onde o menino que denuncia a nudez do rei é substituído por um estranho-estrangeiro-negro. Seja como for, quando as pessoas dizem "o rei está nu" estão denunciando o embuste em várias situações. Em relação à arte de nosso tempo essa metáfora é a mais usual. Não há estudo sobre a arte atual que não recorra a essa lenda. Por quê? Seria assunto para uma instrutiva pesquisa.
Diz a história de Andersen (1805-1875) que houve um imperador que gostava tanto de roupas novas que passava mais tempo experimentando-as do que cuidando das outras coisas do reino. (Já na abertura aparece este tópico curioso, que podemos batizar de neofilia: a paixão pela coisa nova, pela moda, pelo aspecto superficial, exterior, que fazia com que o imperador se desinteressasse da realidade de seu reino). Isto propiciou que dois espertalhões surgissem em suas terras dizendo que produziam uma roupa que não apenas tinha cores deslumbrantes, mas que possuía uma qualidade única: só pessoas muito especiais poderiam vê-la e que apenas pessoas destituídas de inteligência, que não estavam aptas para ocupar cargos no reino, iam dizer que a roupa era invisível ou que não existia.
Assim, estabeleceu-se um processo de seleção, quase um rito de iniciação pelo qual o imperador poderia testar a inteligência de seus auxiliares, pois só os escolhidos eram capazes de ver a roupa invisível que ninguém via. Os falsos tecelões simulavam tecer panos no tear e iam exigindo dinheiro e fios de ouro em troca. E como o monarca quisesse já testar a inteligência de seus auxiliares, pediu ao velho ministro que fosse ver como andavam as coisas. Lá chegando, o principal auxiliar do imperador ficou perplexo, porque os teares estavam vazios. "Não consigo ver nada!". Mas, temeroso de expressar seu sentimento, começou a ouvir a descrição que os falsos costureiros faziam do tecido maravilhoso. E ele se dizia: "Será que sou tão estúpido? Não vejo nada! Vai ver que sou inapto para o cargo que ocupo". E como temesse perder o cargo e os tecelões do nada cobrassem dele a visão que eles tinham, acabou declarando: "É maravilhoso! Que padrões! Que cores! Vou dizer ao imperador que fiquei encantado". Além da trapaça financeira, observe-se que a palavra ocupa o lugar da coisa, o conceito no lugar da obra. Não só o imperador acreditou, desde o princípio, na palavra dos arrivistas, como também o ministro, por medo e insegurança, abriu mão da sua palavra (ou visão) em benefício da palavra (ou visão) dos ilusionistas. E a cena se repete quando o imperador, para testar outro conselheiro, pede que ele faça a visita ao ateliê do nada. A reação foi a mesma. Ele não via nada. Pensou em dizer que não estava vendo nada, mas receoso de passar por estúpido e perder o emprego, partiu para os elogios a inventar verbalmente o inexistente tecido. E o mesmo vai ocorrer com o imperador quando decide ir ver a tal roupa fabulosa. Ao defrontar-se com coisa nenhuma, pensou igual ao velho ministro e ao conselheiro - "Estão me fazendo de idiota!" - mas para não passar publicamente por imbecil, já que dois de seus principais auxiliares viam no vazio coisas fascinantes, passou a exclamar "lindo, maravilhoso, excelente". Assim fechou-se o circuito de invenção verbal da coisa inexistente. Ao qual se incorporou o resto da corte quando auxiliares tiveram que fingir carregar o manto invisível no dia de sua exibição no palácio. A ousadia dos falsários leva o imperador admirar-se diante do espelho. Então, consuma-se a alucinação: "o imperador diante do espelho admirava a roupa que não via". Assim, toda a corte passou a se curvar diante do inexistente com a anuência do imperador e seus auxiliares. "Nenhum deles queria admitir que não estava vendo nada, pois se alguém o fizesse estaria admitindo que era estúpido ou incompetente. Nunca uma roupa do imperador fez tanto sucesso".
E como termina a história? No folclore português, ao invés de auxiliares competentes da versão de Andersen, só os "filhos legítimos" poderiam ver a roupa invisível do rei. Seria, como em outros mitos, a senha da legitimidade para sucessão no trono. Desta feita quem denuncia o embuste é um estranho-estrangeiro-negro. Na lenda de Andersen é uma criança - essa espécie de olhar estranho e virgem - que, descompromissada, grita em meio à multidão: "Ele está sem roupa!". O povo começa a abrir os olhos e concordar com a visão do garoto. Enquanto a multidão gritava, o imperador acuado pensava: "Tenho que levar isto até o fim do desfile. E continuou a andar orgulhoso e, com ele, dois cavaleiros e o camareiro real seguiram e entraram numa carruagem que também não existia". É um belo final irônico, em aberto.
Noutras versões menos instigantes, que até circulam na internet, o rei ficou envergonhado de ter se deixado levar pela vaidade, arrependeu-se e desculpou-se, enquanto os falsos tecelões foram enganar outros em outros reinos, até serem presos e condenados.
Essa é uma lenda sobre um pacto de não-ver, onde toda uma comunidade brinca de avestruz enquanto alguém lucra com a cegueira estimulada. E porque todos têm medo da opinião (ou visão) do outro, todos deixam de ver (e ter opinião). É um caso de cegueira social. Isto ocorre, visivelmente, nas agremiações políticas e religiosas: a produção de um discurso que ordena o que deve ser visto ou não. No caso de grande parte da arte contemporânea isto é um caso de voluntária cegueira artística, próximo do que La Boetie chamava "servidão voluntária". Pode-se perguntar: mas afinal, já que tanta gente é capaz de descrever as sutilezas da inexistente veste real, o rei está ou não está nu? Está e não está. Como diria Nathalie Heinich, "o rei está vestido pelo olho do outro". A linguagem pode ocultar ou desvelar. E esse é um jogo difícil e perigoso de se jogar

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